JOSÉ HÉRCULES LEITE
UM BLA-BLA-BLÁ...
Antes de ter assumido funções e responsabilidades, no meu dia-a-dia, e que muito me agradaram e enobreceram, fui um amante da poesia.
Quando criança estava sempre por perto de poetas e repentistas renomados, cantadores de viola de todos os gêneros, emboladores com pandeiros nas feiras. Atraia-me a figura anciã, magra e sempre importante de um Pinto do Monteiro, repentista e poeta valoroso. Lourival Batista Patriota, (o Louro do Pajeú) era o destaque e, por isso eu vivia na sua cola. Era o mestre do improviso e do trocadilho cantando em dupla, improvisando e tocando na viola. Lembro-me, que na década de 50, se reuniam num bar, nos dias de feira, na cidade de São José do Egito, PE., toda horda de improvisadores daquela região, e, numa mesa redonda, com uma garrafa da cachaça “Marca Olho” no centro, fina e pura que fazia aljofre no copo, aqueles homens de raciocínio rápido e agudo, poetizavam horas inteiras, improvisando mesmo. Na formação da estrofe, aquele que estava versejando, deixava sempre, para o parceiro do lado direito, a rima, que era obrigado a iniciar seu verso rimando com ela. Para eles era uma maravilhosa brincadeira. Lembro-me, que muitos usavam de malícia, ao deixar uma sílaba de difícil rima. Mas, qual o que, eles sempre se saíam bem. Vez por outra, um deles lançava um “mote”, e, por prazer, cada um, no mesmo instante, fazia belas sextilhas, bem rimadas, terminando sempre com o verso-mote pré-estabelecido. Ali, ora produziam uma sextilha, recitavam poemas, contavam causos, piadas, ora davam notícias do movimento cultural da poesia.
Havia, na região, uma família cujo apelido era “Catota”. Homens e mulheres foram grandes poetas e improvisadores. No entanto, nunca deixaram nada registrado. Pois, não sabiam escrever. Zé Catota era caminhoneiro e tinha a poesia na ponta da língua. Numa dessas mesas, certa vez, quando falavam bem ou mal das esposas, Zé Catota saiu-se com essa:
“E, minha mulher é bela/ Só quem diz é Zé Catota/ Só tando cego da gota/ Quando casei com ela/ Só tem um vestido véio/ E este rasgado no seio/ E é como barriguda/ Só enche no meio”. (A Barriguda é uma árvore do sertão do Pajeú, de Pernambuco, que, sendo de caule muito grande, forma uma grande barriga no meio).
D´outra feita, numa daquelas mesas redondas e animadas, com muita brincadeira e riso, ele detonou esta sextilha:
“Essa noite eu tive um sonho/ Com coisa desconhecida/ Eram dois bichos correndo/ Em carreira desmedida/ Era o cavalo da morte/ Atrás da besta da vida”.
Ah! Pinto do Monteiro era absoluto no improvisar. Que beleza, quando ele fala de SAUDADE: “Esta palavra saudade/ Conheço desde criança/ Saudade de amor ausente/ Não é saudade é lembrança/ Saudade só é saudade/ Quando morre a esperança”. E, ainda, sobre o amor ele ensina:
“ Quem espanta nunca laça/ Mas quem alisa encabresta/ Eu jogo a corda no lombo/ Puxo por cima da testa/ Enquanto vida eu tiver/ A minha pisada é esta”.
Ele era cativante, realmente. Sabia conquistar.
À noite, depois da feira, reuniam-se, agora em público, em algum lugar, para uma cantoria. Aí a festa era grande. Várias duplas cantavam animadas, poetizando forte.
Aqueles cidadãos eram felizes, porém, à época, não havia aposentadoria, e todos trabalhavam na agricultura, ou tinham um “bico” numa prefeitura do interior ou mesmo no Governo do Estado.
Para mim era uma festa. Eu não perdia um evento. Tinha o maior prazer de me fazer conhecer por aqueles senhores e era bem aceito.
Ser amigo de Jó Patriota e de Paulo Dias Cardoso era um prazer. Jô Patriota tinha a força poética para dizer:
“Se o pranto é irmão do riso/ Nascido do mesmo amor/ Tanto me faz estar rindo/ Como sentindo uma dor/ Que o sofrimento é da vida/ Como o perfume é da flor”.
Dr. José Gomes dos Passos, Promotor de Justiça, e sua esposa tinham na ponta do lápis o vate para poetizar.
Cancão (João Batista Siqueira) agricultor, visitava-o na roça e gostava de ouvi-lo recitando a ÁRVORA MORTA.
Um causo: certa feita, no sítio Mãe D’água de Dentro, São José do Egito, foi organizada uma cantoria. Logo no início os cantadores acharam que a cantoria iria ser fraca, pois, havia muito pouca gente para assisti-la. A hora avançou e no prato, na frente deles, não caía um níquel. Um deles anunciou que estava se despedindo, porque no prato não caía nem um imbu. O outro, já irritado, aproveitou a “deixa” e criou uma grande confusão, quando se saiu com a seguinte sextilha de cunho ofensivo:
“Adeus Mãe d’água de dentro/ Nunca mais em venho em tu/ Vim gordo, voltei magro/ Vim vestido voltei nu/ Criei ferrugem nos dentes/ E teia de aranha no cú”.
Num outro causo, também numa cantoria, quando os cantadores se apresentavam muito à vontade, eis que surgiu uma discussão, na qual estavam envolvidos o dono casa e alguns visitantes. Os ânimos se alteraram e passaram às ofensas.
“Você é corno”! Corno é você! Um dos cantadores lançou a seguinte crítica: “E nessa casa corno vai/ E corno vem/ Se o dono da casa é corno/ Quem canta é corno também/ E se disserem/ Corram os cornos/ Já sei que não fica ninguém”.
Falando dos trocadilhos de Lourival Patriota, e só ele fazia trocadilhos improvisando, localizei um no Livro Violas e Repentes, de F. Coutinho Filho, quando cantava na cidade de Patos, PB. Havia na sala um cidadão chamado Manoel Chorró, que não se resolvia dar sua contribuição. Lourival então cutucou:
Tome cuidado na vida/ Senão pagar-nos, Chorró/ Que eu boto um “o” e um “a”/ E tiro o acento do “o”/ Já se sabe como fica/ Embora seja cotó”
Noutra cantoria atacou o sovino, chamado DECA, que resistia em ajudar a melhorar a arrecadação da noite, com o seguinte trocadilho, colhido, também, no Viola e Repentes:
Boto o “d” e tiro o “e”,/ Boto o “c” e boto o “a”,/ Depois um acento agudo/ Em vez de Deca e decá,!/ Tiro o “d” e tiro o “e”.../ Seu Deca venha cá!
Rogaciano Leite acalentava meu ego recitando poemas como Eulália e Os Trabalhadores.
Certa vez, me sentei à mesa do poeta Assêncio Ferreira, na calçada do Bar Savoi, avenida Guararapes, Recife, PE. Identifiquei-me. Disse-me de São José do Egito. E eu só tinha 17 anos. Recitei versos interessantes pra ele. Apertou minha mão com afago. Foi gentil comigo. Sua roupa branca e chapéu de abas longas eram um it.
Mas, no sertão existiu um poeta que produziu belas poesias, para si e para os amigos, mas, nunca lançou publicações. Biu de Crisanto foi um homem sem profissão. Bebia todo dia e viveu sua vida para a cachaça. Fazia seus poemas para divertir-se. Num soneto, lançou-se a procurar Deus. Biu era católico e aos domingos comparecia à igreja para assistir a missa. No entanto, escreveu.
Procuro Deus nos livros da estante,
Olho da crista do mais alto monte,
E vejo que o mesmo é como o horizonte,
Cada vez mais de mim fica distante.
Exalto da Montanha neste instante,
E ao sentir-me sozinho baixo a fronte,
Desço as escarpas, interrogo a fonte,
Ninguém responde nada vou à diante.
De repente uma voz ecoa longe,
De súbito defronto-me com um monge,
Vociferando num timbre que me abrasa,
Dizendo, volta por essas espessuras,
Porque o Grande ser que tu procuras,
Está num quadro que tu tens em casa.
Morei por dois anos na casa do seu Luiz Gonzaga do Nascimento, o rei do baião, quando trabalhei na cidade do Exu. Convivi diariamente com D. Helena Gonzaga e com seu Luiz, que era assíduo na sua fazenda Itamaraji.
Almoçávamos e jantávamos em família quase sempre. Após o jantar, reuníamo-nos na frente da casa grande, sob a fronde do pé de acácia amarela, com a conversa estendendo-se até altas horas. Passei belas manhãs de domingos com ele cantando velhas canções para mim, o Juiz, o escrivão, advogados e nossas esposas.
Seu Luiz Gonzaga, em casa, era gentil e atencioso. Conversava pouco, mas, gostava de ouvir as brincadeiras e ria à vontade. Certa vez, estávamos num oitão conversando, quando Dunga chegou, seu sobrinho e gerente das fazendas, dizendo qualquer coisa, e, falando sério, disse: − Gonzaga, estão dizendo que o Chuchu tem as três vitaminas mais importantes. − Sim. Diga. − A, B e C. − É isso aí, Dunga. − É Gonzaga; É “A” de água, “B” de bagaço e “C” de casca. − O que é isso, senhor, tá com brincadeira comigo! Puxe daqui.
Uma vez, o gerente do Banco do Brasil, que era gaúcho, resolveu comemorar seu aniversário na casa grande da fazenda de seu Luiz. Teve sorte, porque ele estava passando o fim de semana por lá. Lá pras tantas seu Luiz mandou que Dunga trouxesse a safona, um pandeiro e uma zabumba. Quando puxou o fole, todos se calaram. Aí ele cantou uma linda valsa, que nenhum dos presentes conhecia: JARDIM DA SAUDADE. O poema da música fala de um gaúcho caminhoneiro, que vivia a viajar pelas estradas do Brasil. O gaúcho e sua esposa choraram a cântaros. Os presentes ficaram com ânsia de choro. Foi comovente.
Tenho a grata satisfação de conviver e freqüentar a casa do Poeta de Catende, Álvaro Murilo Crespo, sensível, inspirado e de maravilhoso vate. Ser poeta é retirar do sonho a sua essência. E Murilo é um desses captadores invejáveis do íntimo profundo das coisas materiais, ou sensíveis. Ama os compositores clássicos e vivencia belas sonatas de Beethowem, Brahms, Divorak e outros. Ora, o que me falta? Mais vaticínio. Amém.